Dicas de Cordel

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Cordel - Crônica Popular: QUANDO O SERTÃO VIROU MAR

Nas primeiras trovoadas do ano tudo muda no Sertão. A chuva é a grande benção temporal do semiárido. Durante o ano inteiro, quando não há seca, chove apenas quatro meses e por mais oito meses a terra seca à espera da próxima estação chuvosa.

No inverno, os trovões roncam nas alturas, parece que as estruturas do céu vêm abaixo se desmanchando para chover. Ao anoitecer os relâmpagos invadem as casas e abrem um clarão na Caatinga como um farol de aviso, preciso e festejado. É tempo de chuva e nesse tempo troveja, relampeia e chove.

Fui ao alto Sertão da Paraíba em abril de 2008, num desses tempos de inverno intenso, e não pude disfarçar a alegria de ver o Sertão virando mar. Mais que mar, maravilha, ilhas de terras e de pedras cercadas pela inquietude das águas que invadiram o Sertão.

Vi as enxurradas pelas sangrias dos açudes desaguando no riacho que virou rio de tanto que cresceu, rio que desapareceu e se formou oceano rompendo o leito e se espalhando pelos planos das terras do Sertão. Chão de ouro, onde a alpercata de couro assenta suas pegadas deixando uma poça d’água a cada passo que dá.

Mar de poesia, serrania com diversos tons de verde, flores campestres, céu nevoento com frisos de luz do Sol, num contraste de beleza indizível. Pedras vulcânicas no lombo da Borborema, choramingando de satisfação pela ação das chuvas numa queda d’água só.

Povo feliz, que nem diz de sua felicidade, mas pela luminosidade do rosto de cada um (do meu também), deixa transparecer que, além do que se vê, tem coisa que só se pode sentir.

Penso que o tempo prolongado de seca no Sertão dá mais qualidade ao coração da gente que aprende a esperar, e ao mesmo tempo põe mais valor ao receber, nos fazendo viver intensidades de alegrias, bem maiores do que o cotidiano previsível da urbanidade.

Começa a chuva e as ferramentas guardadas num canto da sala ou da despensa, emaranhadas de teias de aranhas, vão aos poucos sendo revisadas, limpas e trazidas ao terreiro para serem afiadas em pedra fincadas no chão. 

Animação de sobra. A família se desdobra nas atividades geradas pela fartura. Rios e riachos cheios; açudes, lagoas e barreiros sangrando; terra molhada, pasto nascendo, reflorescendo que a Caatinga vira cantiga com a revoada dos pássaros voltando.

Viva o manancial da vida que transborda, que sacia, que se irradia de amor e espera, que nos faz olhar com íris multicoloridas, que atenta para a simplicidade da vida, não a permitindo secar à mercê de viver correndo para encher-se de mais valia e solidão.

A região é belíssima, o corte geográfico transfere formas incomparáveis, a variação climática é austera, o povo se alegra com a bondade de Deus e nEle espera. O olhar fala, o falar canta, o cantar dança em ciclos temporais de vindas e idas, sempre tudo muito intenso, assim como são as águas do mar, do mar do Sertão que eu vi e vivi nesses dias de chuvas por lá.

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